Temos um novo padrão de eficácia e segurança na anestesia odontológica?

A associação de um vasoconstritor à solução anestésica foi sem dúvida uma das mais importantes evoluções da anestesia odontológica, pois tornou o procedimento mais eficiente, aumentando o tempo de anestesia, e mais seguro, diminuindo a velocidade de absorção e consequentemente a concentração sanguínea do anestésico local, ou seja, diminuindo sua toxicidade. Além disso, a presença de um vasoconstritor na solução anestésica nos traz o benefício da hemostasia e consequente melhor visualização do campo operatório nos procedimentos cirúrgicos.

Embora sua utilização tenha sido considerada controversa e bastante discutida pelos clínicos e pela comunidade científica nas décadas de 80 e 90, a literatura contemporânea parece consensual no sentido de reafirmar os benefícios da utilização de um vasoconstritor, inclusive nas anestesias de pacientes com algum tipo de comprometimento sistêmico. No entanto, especial atenção deve ser dada não só ao agente vasoconstritor selecionado, como também e talvez principalmente a sua dose ou concentração.

Nesse sentido, embora tenhamos no Brasil diferentes agentes vasoconstritores (Tabela 1) que podem ser utilizados nas soluções anestésicas, uma análise da preferência de utilização dos dentistas de diferentes locais mostra que a epinefrina parece ser o vasoconstritor amplamente mais utilizado do mundo, representando quase 90% do mercado em países como Alemanha, França, Inglaterra e Canadá. Isso acontece porque, além de ser um vasoconstritor mais potente, a epinefrina parece ser também a droga mais segura a ser utilizada, sendo a única que atua sobre os receptores beta 2 ao final do procedimento, causando uma vasodilatação de rebote que garante a volta da irrigação sanguínea ao local da anestesia, diminuindo o risco de necrose tecidual. Além disso, os artigos mostram que não há alterações significativas nos padrões cardiovasculares dos pacientes quando se administra epinefrina em doses baixas como as utilizadas em Odontologia.

Por outro lado, observa-se que as soluções anestésicas sem vasoconstritor atualmente são empregadas muito raramente em Odontologia, com trabalhos mostrando taxas de uso inferiores a 10%, isto porque o padrão anestésico oferecido por estas soluções anestésicas, especialmente no que diz respeito à anestesia pulpar, parece ser insuficiente para a realização com segurança da maioria dos procedimentos da rotina odontológica, não trazendo benefícios na maioria dos casos.

TABELA 1 – Vasoconstritores disponíveis no mercado brasileiro para anestesia odontológica

Em relação à concentração do vasoconstritor, como regra geral podemos afirmar que devemos sempre utilizar a menor dose capaz de gerar os efeitos terapêuticos desejados, minimizando assim o risco de efeitos colaterais indesejados para os pacientes. Atualmente, o mercado brasileiro oferece a opção de utilização da epinefrina em duas concentrações clinicamente eficientes e seguras, 1:100.000 e 1:200.000. Na concentração de 1:100.000, a quantidade de epinefrina presente em um tubete anestésico é de 0,018mg, enquanto na concentração de 1:200.000 essa quantidade cai pela metade, ou seja, 0,009mg.

A diminuição na quantidade de epinefrina aumenta a segurança do procedimento, sem necessariamente inviabilizar o sucesso da anestesia, especialmente quando essa associação é feita com a articaína, anestésico que também mostra um padrão de eficácia e segurança superior em relação aos outros sais anestésicos disponíveis para anestesia local, inclusive em relação ao tempo de anestesia que parece ser até 50% maior. Artigos recentes mostram tempos de latência e duração de ação melhores quando utilizamos articaína em relação à lidocaína, mesmo com concentrações de epinefrina menores. Na prática podemos afirmar que a articaína com epinefrina 1:200.000 pode substituir a lidocaína ou a mepivacaína com epinefrina 1:100.000 no dia a dia clínico com diversos benefícios, tanto no padrão de eficácia, quanto no padrão de segurança. Prova disso é que mais de 50% dos dentistas na Alemanha e Estados Unidos por exemplo já utilizam a epinefrina 1:200.000 como primeira opção, especialmente para pacientes com comprometimento sistêmico, grupo que cresce cada vez mais em todo mundo.

Naturalmente que os pacientes que requerem cuidados especiais, como por exemplo crianças, gestantes, diabéticos e cardiopatas, podem se beneficiar desta combinação, uma vez que a articaína tem tempos de metabolização e eliminação até 3 vezes menores que os outros anestésicos. Isso acontece pois seu processo de biotransformação se inicia já no plasma, enquanto os outros anestésicos tem metabolização exclusivamente hepática. Adicionalmente, o fato de podermos utilizar metade da dose de epinefrina (1:200.000) com sucesso clínico comprovado, naturalmente torna o procedimento mais seguro para estes pacientes.

Talvez um exemplo claro destes benefícios ocorra quando da necessidade de extração de molares decíduos. Artigos mostram que a utilização de articaína com epinefrina 1:200.000 permite a remoção destes dentes sem a necessidade do bloqueio do nervo alveolar inferior. A utilização somente de anestesia infiltrativa evita o efeito colateral de anestesiar a língua do paciente diminuindo o risco de trauma tecidual e também de fratura de agulha na hora do bloqueio. Outra situação que podemos utilizar como exemplo é em relação ao limite de dose para pacientes ASA 3 e 4 pois quando utilizamos a epinefrina 1:100.000 poderemos injetar no máximo 2 tubetes, enquanto na concentração de 1:200.000 esse limite será de 4 tubetes, o que nos permite maior liberdade e segurança no planejamento dos procedimentos e no atendimento destes pacientes.

De maneira simplificada podemos dizer que a utilização da articaína com epinefrina 1:100.000 será nossa melhor opção para procedimentos cirúrgicos e para quando queremos um maior tempo de anestesia ou analgesia pós operatória (Implantodontia, Periodontia, Cirurgia, Endodontia, etc.); já a articaína com epinefrina 1:200.000 se torna nossa melhor opção para o dia a dia clínico (Dentística, Prótese, Odontopediatria, etc.) e para os pacientes com comprometimento sistêmico de forma geral.

Sendo assim, respondendo de maneira direta a pergunta que da título a este artigo, podemos afirmar que a partir das pesquisas mais recentes mostrando as diversas vantagens da articaína, e de termos ganhado a opção de utilizá-la em combinação com diferentes concentrações de epinefrina, mais uma vez evoluímos, e temos um novo padrão de eficácia e segurança na anestesia odontológica, o que traz diversos benefícios para dentistas e pacientes.

 

REFERÊNCIAS

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Sobre o Prof. Dr. Filipe Polese

  • Doutor em Odontologia pela UNICAMP;
  • Mestre em Farmacologia, Anestesiologia e Terapêutica pela UNICAMP;
  • Diretor do Instituto de Pós-graduação e Pesquisa em Odontologia (IPPO) em Balneário Camboriú-SC.

 

 

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